A crise atual de valores suscita discussões, que são o sintoma da falta de direção, de oriente. As inovações biomédicas, a corrupção da dignidade, o sistema econômico excludente, a proliferação de fundamentalismos fanatizantes, são alguns dentre tantos fatores que nos fazem retomar os problemas centrais da ética: O que é bom? O que é justo? O que é moralmente aceitável? Qual o critério para emitir um juízo moral? Na generalização da discussão, acontece também a vulgarização dos significados. Isto faz parte da crise: conceitos dúbios e definições obscuras.
Considerando o modo de Aristóteles, Kant e Habermas construírem suas "éticas", ensaio uma distinção entre moral e ética. Normalmente vivemos conforme determinadas normas de conduta internalizadas que formam nossa consciência moral. A moral é este modo costumeiro e espontâneo de agir, relacionar-se com os outros, pautado por normas; é a prática e são as normas que a regem. É anormal fazer ética, entendida como reflexão crítica sobre a moral, como teorização da moral, por duas razões.
Primeiramente, devido ao próprio processo de formação da consciência moral, que acontece espontaneamente, desde a primeira infância, pela assimilação do modo de vida ou do "mundo vivido" em que surgimos. Surgimos em um "mundo vivido"[1], ou numa cultura na qual formamos o nosso horizonte de compreensão, através da própria cultura na qual nos abastecemos dos conteúdos semânticos da linguagem, que modulam a nossa consciência, o nosso modo de sentir, de pensar e de agir, habilitando-nos para o convívio social neste mesmo contexto. Por isso, fazer ética é uma raridade, mas é normal viver a moral vigente e, no máximo, discordar de algumas normas ou ações particulares, sem nos darmos conta de que elas fazem parte harmônica de um todo articulado, perpassado por valores aceitos: a cultura. Por exemplo, em nossa sociedade é normal o "dever de consumir" e de medir as pessoas comparativamente pela capacidade de consumo. Faz parte da moral do mercado que não se questiona. No máximo, pode haver um questionamento ressentido sobre as excessivas e ostensivas posses de alguns, enquanto a maioria não tem acesso ao mínimo.
Em segundo lugar, pelo já exposto, infere-se que é difícil fazer ética de forma adequada, porque é questionar algo que está em nós e que nos envolve: a moral; as nossas próprias convicções. A moral, embora esteja na consciência subjetiva, insere-se neste todo maior, que mais objetivamente denominamos de cultura. Como questionar adequadamente algo que nos envolve? Sem um referencial externo[2], isto seria impossível. E mais, fazer ética é um sintoma; uma manifestação da doença da consciência moral; manifestação de uma consciência moral que entrou em desequilíbrio consigo e com a cultura. É uma doença que herdamos dos sofistas atenienses do séc. V a.C. e que, no séc. IV a.C., foi retomada genialmente por Aristóteles, que, em sua Ética a Nicômaco, discute os ideais de vida, as concepções de felicidade, vigentes na consciência de seus coetâneos e os meios que julgavam propícios para atingi-la. Depois dos grandes sofistas, não foi mais possível a harmonização social e o equilíbrio institucional sem uma segunda função da ética: a de elaborar princípios para fundamentar a moral e o direito. Refiro-me às sociedades que adotam a racionalidade como critério. Isto vale também para a intelectualidade do medievo, embora naquele contexto não se questionassem os princípios religiosos, formulava-se, contudo, argumentações para validar os mesmos, e a partir deles também se exercia certa crítica aos costumes, mas entendia-se que esta atividade intelectual deveria chegar ao chão da normatividade, consequentemente, da justificação de certas normas dentro daquele imaginário sólido e inquestionável. Lembro aqui, a título de exemplo, para ilustrar a dificuldade de fazer ética, que grandes intelectuais, como Tomás de Aquino, tinham justificativas para a tirania, tais quais a expressão ainda corrente: "Todo povo tem o governo que merece", agora com outro significado, secularizando.[1] Mas, em última análise, o que garante o cumprimento das normas no contexto medieval é a esperança no paraíso(felicidade eterna) e o medo do inferno.
Na modernidade, excluindo-se Deus ou secularizando-se a promessa, a tarefa da ética volta à filosofia por motivos aceitáveis, uma vez que em nome da religião foram cometidas muitas atrocidades e matanças (inquisições e décadas de guerras religiosas). Houve muitas formulações antagônicas: naturalismo, empirismo, racionalismo, etc. Cada qual, a seu modo, opõe-se ao imaginário medieval, que ainda vigora na moral enquanto não se consolida a mudança em todas as instâncias da sociedade.
Paradigmático é o formalismo de Kant, não por apostar na razão subjetiva como forma de garantir a autonomia do Sujeito, ou por mostrar que as outras propostas modernas são heterônomas, mas pelo fato de haver mostrado que os princípios que a razão formula ou reconhece como universalizáveis (Imperativos Categóricos) são formais, abstratos, portanto, não resolvem problema moral algum; não ordenam o que fazer, mas são a referência para o modo de agir, e acrescento, são a referência para se fazer ética. Quando, a título de exemplo, tomo por referência o princípio: "Agir de tal modo que a dignidade humana seja respeitada em todas as relações", e reflito sobre as relações econômicas, imediatamente me espanto por constatar que no mercado, com suas leis "autônomas" e sua moral inquestionável, a pessoa humana serve apenas de meio e durante o tempo que for útil ao mercado, etc. Claro que, resta sempre definir o que se entende por cada um dos conceitos do princípio, especialmente os centrais. Por exemplo, o que é dignidade humana?
Além destas funções indicadas - criticar, fundamentar e, precariamente, justificar, compete ainda à ética definir o que é uma ação moral, quais as condições que se pressupõem para a moralidade. Por isso, a ética não é mais um campo da filosofia, mas uma teorização que transita pelas ciências humanas e ciências da vida. Não é possível dar conta do problema da consciência, da liberdade, do conhecimento dos possíveis efeitos da ação e da responsabilidade, sem a discussão com os avanços do conhecimento em geral. Se bem que esta transdisciplinariedade ainda possa ser considerada filosofia numa concepção epistemológica nova, que substitui a visão mecanicista e fragmentada pela sistêmica, do holograma.
Pelo exposto, é desnecessário argumentar contra o uso equivocado do termo ética em expressões como: "ética profissional", "fulano não tem ética", carecemos de uma "ética política", etc. O código que regulamenta o exercício profissional de uma categoria é uma moral restrita, específica, Mas quando os médicos, por exemplo, discutem sobre as normais morais que regem a sua atividade de profissionais, estão fazendo ética. No cotidiano, porém, aplicam a moral. Ninguém "tem ética". Cada pessoa ou grupo humano vive a sua moral. Poucos fazem ética.
Contudo, a distinção feita aqui é metodológica, não etimológica, e é consensual entre os especialistas que se dedicam ao assunto. Certamente na linguagem cotidiana, normalmente confusa e não raro ambígua, continuaremos utilizando o termo ética para qualquer coisa. Embora tenhamos plena consciência disto, pensamos que uma das funções do filósofo continua sendo a de 'terapeuta da linguagem' no sentido de elaborar conceitos precisos. Se isto é importante em todas as áreas de conhecimento, certamente é fundamental neste tipo de assunto. Assunto para o qual sabemos, desde Aristóteles, ser insensato esperar que se chegue à exatidão lógico-matemática. O que não nos isenta da responsabilidade de buscar a precisão tanto quanto possível nos limites da lógica-retórica.
[1] Texto publicado no Jornal O Contemporâneo e, posteriormente, na Revista Estudos Leopoldenses – Ciências Humanas.[2] A expressão "mundo vivido" tem o significado histórico-cultural desenvolvido por Merieau Ponty e incorporada na formulação habermasiana.[3] "Referencial Externo" refere-se à possibilidade de princípios formais como os kantianos. Não no sentido platônico. Pode ser algo mais radical no sentido levinasiano: a alteridade do outro antropológico, exterior ao sistema vigente, a pessoa concreta do excluído, que não pode entrar no discurso.[4] O raciocínio é simples: Deus é todo poderoso. Todo poder vem de Deus. Consequentemente, também o poder do tirano é concedido por Deus...
Original